Saturday, September 23, 2006

Memória

Vinte anos depois de sua morte, a escritora de novelas Janete Clair ganha biografia em livro

Símbolo da cultura de massa latino-americana, a telenovela tem seus ícones. Um deles a escritora Janete Clair cujos 20 anos de morte foram marcados com o lançamento do livro Nossa Senhora das Oito – Janete Clair e a Evolução da Telenovela no Brasil, escrito pelo jornalista Mauro Ferreira, com pesquisa e reportagem do jornalista Cleodon Coelho (roteirista do programa Vídeo Show). Autora de 21 novelas na Globo, Janete Clair ganhou homenagem póstuma na sisuda Academia Brasileira de Letras que, finalmente, se rende a realidade da teledramaturgia.

Fatima Dannemann

O ano, 1978. A grande questão nacional: quem matou Salomão Hayala? Mal davam 20h nos relógios e Paulinho da Viola começava a cantar: “minha pedra é ametista/ minha cor o amarelo/ mas sou sincero/ eu preciso ir urgente ao dentista/ tenho alma de artista”... e até os rapazes desafiavam quem dizia que novela era coisa de mulher e sentavam-se em frente a TV para ver a mania do momento, O Astro. Nos papeis principais Dina Sfat e Francisco Cuoco. Vilão especialmente convidado, Rubens de Falco que, como caiu nas graças do público como o marido de Tereza Rachel (no papel da viúva do falecido Salomão), foi inocentado do assassinato que acabou caindo nas mãos de outro personagem qualquer. Tecendo o destino desses personagens e calando o pais por uma hora todos os dias por quase seis meses, estava Janete Clair.
Mesmo que ela não tivesse escrito uma linha de novela sequer, Janete seria no mínimo primeira dama da teledramaturgia. Seu marido, Dias Gomes, assinou sucessos como O Bem Amado, Roque Santeiro e vários oturos. Mas, enquanto Dias reinava no horário, hoje extinto, das 22h, Janete Clair era a toda poderosa que brilhava as 20h. Por duas décadas, entre 1964 e 1983, ela fez mocinhas suspirarem, namorados atrasarem o encontro em uma hora para que eles não perdessem a novela, ela ditou moda, fez adolescentes e jovens cantarem alguns hits como “rock and roll lulluby”. E durante os piores anos da ditadura, a autora aliviou o carma dos brasileiros que por pelo menos uma hora podiam pensar que o destino de Cristiano e Simone, protagonistas de Selva de Pedra, era a coisa mais importante do mundo. Mais, até, que o próprio futuro do país.

Censura

Se seu pique de atividades se deu entre os piores anos da ditadura militar, 1967 até 1983 quando morreu de câncer em 16 de novembro aos 58 anos, não significa que Janete Clair tenha passado ao largo das tesouras dos falsos-moralistas que ditavam a censura do país na época. Polêmica, falando de temas como aborto, Janete Stocco Emmer, seu nome verdadeiro (o Clair era uma homenagem a música Clair de Lune de Debussy), várias vezes foi alvo de censura. Precisou reescrever capítulos inteiros de suas novelas, modificar personagens, trocar falas e alterar algumas tramas paralelas. Claro que isso tudo é “fichinha” perto do que aconteceu com seu marido, Dias Gomes, que teve Roque Santeiro totalmente censurada faltando poucos dias para a estréia..
A autora chegou a Globo em 1967 depois de uma passagem pela Rede Tupy onde escreveu O Acusador, com Jardel Filho. Sua primeira novela na Globo foi Véu de Noiva que inaugurou um novo jeito de fazer folhetins eletrônicos. Antes, predominavam novelas de época, transposição de clássicos da literatura, ou dramalhões cubanos e mexicanos traduzidos para o português estilo O Direito de Nascer. Véu de Noiva, com Cláudio Marzo e Regina Duarte, trouxe um estilo mais brasileiro e mais natural. Aproximou ficção de realidade e os artistas de seu público.
Dado o pontapé inicial viria uma série de sucessos. Irmãos Coragem, de 1970, misturava faroeste, dramas, romance. Depois foi a vez de Selva de Pedra. Regina Duarte, então namoradinha do Brasil, vivia a Simone perdidamente apaixonada por Cristiano, vivido pelo mesmo Francisco Cuoco que estaria presente em O Astro, Pecado Capital, ah, e em Eu Prometo, o ultimo trabalho de Janete, deixado inconcluso com suas morte, terminado por Dias Gomes.

Opinião

Minha novela preferida

Que novela teria marcado a carreira de Janete? O Astro, cuja identidade do assassino de Salomão Hayala ela não revelou sequer ao presidente Geisel? Selva de Pedra, que chegou a dar 100 por cento no Ibope? Irmãos Coragem, que como Selva de Pedra teve direito a remake? Ou seria Pecado Capital que começava com – de novo!- Paulinho da Viola cantando “dinheiro na mão é vendaval/ é vendaval...”, enquanto eram desvendadas as tramas de Lucinha, Carlão e Salviano Lisboa? Não sei o que pensam os outros, mas a minha preferida é Sétimo Sentido.
Lembro bem, chegava do ballet esbaforida, tomava banho, jantava em tempo recorde e sentava para ver Luana Câmara alternando-se a Priscila Capricce revelando Regina Duarte como uma senhora atriz, uma verdadeira lady com maturidade e talento, e Janete Clair reinando absoluta em uma novela que fugia a mesmice de todas as outras especialmente a da mocinha boba, chorosa, sofredora e mala da maioria das tramas anteriores. Estávamos no começo da década de 80, os anos que mudaram tudo: nos devolveram a liberdade, acabou-se a democracia, Gabeira desfilando com sunga de crochê e as mulheres mais ousadas desnudando os peitos em topless na praia. Não, mocinhas quase cretinas como a Simone de Selva de Pedra estavam fora do contexto.
Com estréia em março de 82, Sétimo sentido trazia Guel Arraes, Jorge Fernando e Roberto Talma na direção de um elenco com nomes de primeira grandeza, encabeçados pelo mesmo par que viveu Cristiano e Simone, mas de uma forma muito mais legal, diga-se de passagem. Francisco Cuoco era Tião Bento, Regina Duarte era Luana Câmara e Priscila Caprice. Enquanto Luana lutava para reaver a fortuna que havia sido roubada pela família Rivoredo, Priscila aprontava e desfilava no áudio uma trilha sonora com musica de primeira linha. Esotérica, com Gilberto Gil, Disse Alguém, com João Gilberto, Charmes do Mundo, com Marina, ah, e o tema da abertura não foi com Paulinho da Viola. Era Chico Buarque quem entoava a belíssima Vitrines na abertura de Sétimo Sentido.
Sétimo Sentido também deu uma virada na teledramaturgia, sim. Trouxe coisas novas e a principal dela foi mostrar que Regina Duarte tinha potencial para papeis mais trabalhados. Talvez por isso, dois anos depois, quando a censura resolveu liberar Roque Santeiro e a novela foi reescrita, foi Regina que abocanhou o papel da viúva Porcina e não Betty Faria (outra heroína dos folhetins e protagonista de Pecado Capital e Duas Vidas, entre outras) que tinha sido a escolhida da primeira versão e que, anos mais tarde, viria protagonizar Tieta. Mas foram outros tempos, outros autores, e outras protagonistas escrachadas e visualmente cafonas. Um caminho que Regina Duarte, revezando Priscila Caprice com Luana Câmara, abriu em Sétimo Sentido.

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