Sunday, May 18, 2008



Como se pessoas fossem borboletas: e “O Colecionador” faz história

Fatima Dannemann

As vezes, a ficção pula para a realidade e de forma cruel. Não são os sonhos que se concretizam mas os pesadelos, toda a bizarrice que o ser humano sufoca. Assim, em meio a um ano negro numa década de surpresas desagradáveis, o mundo acorda perplexo com a noticia de um pai que manteve a filha 24 anos presa num porão. Isso aconteceu de verdade, na Áustria, mas uma história parecida fez furor nos anos 60, o romance O Colecionador, de John Fowles, transformado em filme pelas mãos de um dos mais festejados diretores hollywoodianos, William Wyler, com um darling da época, Terence Stamp, no papel principal.

O livro – nem tente encontrar em nenhuma livraria, a única edição recente é de uma coleção vendida nas bancas nos anos 80 e você terá sorte se achar algum exemplar em algum sebo – é neurótico, cruel, bizarro, mas é o tipo da leitura que prende atenção do primeiro ao último capítulo. O leitor acompanha toda a frieza psicótica de Freddy, um colecionador de borboletas apaixonado por Miranda – não é assim que ela se chama, mas é assim que ela é chamada por ele – ao preparar o porão de sua casa para aprisioná-la tudo porque ela nunca correspondeu a seu “amor”, mas acompanha também todo o sofrimento de Miranda ao descrever minunciosamente cada dia no cativeiro.

Se em livro, temas como seqüestro, cárcere privado, tortura psicológica, já causam espécie, ao vivo e a cores, esses fatos chocam. Amstettel, na Áustria, deixou o mundo assustado. Durante 24 anos, o engenheiro Josef Fritzl abusou sexualmente e manteve presa no porão de casa sua filha Elisabeth e três dos sete filhos que teve com ela. Os outros quatro, um morreu ao nascer e foi incinerado pelo pai no sistema de aquecimento da casa. Os outros três foram adotados pelo engenheiro e sua esposa. Foi preciso sua filha-neta Kerstin adoecer gravemente e precisar de hospital para que os crimes de Fritzl viessem a tona. Pelo menos, Elizabeth, seus sete filhos-irmãos e sua mãe tiveram final mais feliz que a Miranda do livro de Fowles que morre antes de ser libertada.

Não foi a primeira vez que a Áustria viveu um problema deste tipo. Natascha Kampush levou oito anos presa num cativeiro nos arredores de Viena e há dois anos conseguiu fugir. Mas, o criminoso não era seu pai. Pelo menos. Porque o que se vê nas páginas de jornais brasileiros são pais e mães aprisionando os filhos muitas vezes porque eles comeram fora de hora ou bateram nos filhos do vizinho. Revistas noticiaram recentemente o caso de um rapaz trancafiado por 15 anos em Goiás por sofrer de problemas mentais. Para a mãe, pobre e quase analfabeta, esse seria o único jeito de controlar os transtornos do menino que se tornou obeso, arredio, com problemas renais. Segundo declarações da mãe da criança: ou ela prendia o filho numa cela em sua própria casa ou teria que interná-lo num hospital, o que ela achava mais cruel.

Na ficção, pelo menos em novelas, cárceres privados têm sido vistos não só em cenas de seqüestros. Muitos deles por motivos fúteis como o que aconteceu com Petrus, na novela Duas Caras, seqüestrado por Waterloo, capanga de Marconi Ferraço por vingança amorosa: Andréia, irmã de Bijuzinha, namorada de Petrus, dá a entender ao capanga que o menino era namorado dela. Waterloo não gosta e seqüestra o garoto só para fazer ameaças e pressioná-lo a deixar de se relacionar com as moças.

Outras vezes, pessoas viram borboletas na mão de maridos que se sentem desprezados como o Freddy (chamado de Caliban por “Miranda”, numa referencia aos personagens da peça de Shakespeare A Tempestade) e a Globo vem repetindo a fórmula como se esse circo dos horrores fosse o supra-sumo da teledramaturgia. Aconteceu em Desejo Proibido, onde “Miranda” era Ana, o carcereiro seu ex-marido e o porão uma caverna junto a gruta da Virgem de Pedra. Agora se repete em Ciranda de Pedra, onde Daniel Dantas é o marido cruel que tranca a esposa doente (Ana Paula Arósio) num sótão alegando que ela está sofrendo de problemas mentais. Seja como for, pessoas não são borboletas, a prova é o que vem acontecendo com Elizabeth e seus filhos que após saírem do porão estão sendo tratados não só por causa de problemas de saúde física como por conta de todos os traumas psicológicos sofridos.

Quanto ao livro de John Fowles, O Colecionador é um livro que arrebata e prende atenção, daqueles exemplos em que você lê uma vez e é capaz até de lembrar as palavras, anos e anos depois de ter lido. O filme, hoje cult, causou furor em 1965 com as interpretações de Terence Stamp – por onde anda ele – e Samanta Eggar no papel de Miranda. Pode ser que em alguma locadora seja encontrada a versão em DVD. Mesmo com todo horror que seqüestro e prisão particular provoquem na vida real, o filme e/ou o livro valem a pena como forma de podermos dimensionar o horror que Miranda deve ter sofrido. Ou as borboletas que muitos insistem em colecionar mantendo-as trancafiadas em frascos de vidro.



Fatima Dannemann – DRT-Ba 786

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