Friday, June 13, 2008

Remanescentes de quilombo vivem no passado

Maria de Fatima Dannemann




O lugar onde o vento faz a curva. Depois de mais de três horas de carro, em ritmo de aventura, com raposas e pacas cortando a pista a todo instante, é esta a impressão que se tem de Laje dos Negros: a de ser realmente onde o vento faz a curva. Um lugar perdido no tempo e esquecido pelos mapas. Este povoado, mais conhecido como Laje, entre os moradores da região de Campo Formoso, centraliza outros povoados tão perdidos e precários que vão se encontrando ao longo dos 110 quilômetros de estrada de chão batido, cheia de lamas e riachos profundos: Alagadiço, Gameleira, Casa Nova, Pedra, e mais de uma dezena de outros vilarejos (alguns são apenas um punhado de casas), onde vive uma população extremamente pobre.

Somente há tres anos esses povoados ganharam energia elétrica. Muitos não têm água encanada. Nenhuma das estradas que interligam esses povoamentos têm qualquer tipo de pavimentação. Avista-se Laje dos Negros, o maior dele, depois de uma ladeira. Lá embaixo, na curva, no pé de um morro alto e junto ao lajedo de pedra às margens do rio onde os negros se amotinaram, amontoam-se os pequenos casebres onde moram trabalhadores rurais e pequenos comerciantes que estão vivendo uma série de problemas em decorrência a falta de luz. Os piores são a falta de emprego, “ninguém acha um serviço nem para ganhar R$5,00”, diz Júlio Tibúrcio da Silva, um dos moradores mais antigos do lugar, e a violência provocada pelo tráfico de drogas.

Medo


É como se ainda estivessem no quilombo fugindo aos senhores de engenhos ou fazendas dos tempos imperiais. Mal avistam um carro fecham portas, janelas, escondem-se dentro de casa. O sertão, que sofre com seca, enchente, falta de recursos financeiros para as populações mais pobres investir até em agricultura de subsistência, tem problemas mais profundos. No início do século, o terror do agreste eram os cangaceiros e a volante em sua eterna perseguição. Hoje as brigas entre traficantes de droga e Polícia federal levam o medo aos descendentes de escravos que ficaram na região, cujo nome provoca calafrios de medo em alguns moradores da sede de Campo Formoso.

– Muita gente foi embora, isso aqui não dá futuro a ninguém não, dizem os moradores do lugar que moram em minúsculos casebres com famílias com até 10 filhos ou mais. Quando anoitece e fica escuro, ninguém enxerga mais nada. Todo mundo se tranca em casa, acende os fifós e vão dormir. Sonhar com dias melhores ainda é a melhor diversão para toda aquela gente sofrida e desconfiada. “Luz? Aqui? Governo colocar luz aqui? Ah, eu só acredito vendo”. Este é o “tesouro” que pode resolver os problemas da região: o desemprego e a violência que as continuadas ações tem ajudado a resolver.

Antigamente era muito pior, segundo os moradores de Laje. Com as batidas periódicas que a PF vem promovendo no lugar, a situação melhorou. “Outro dia pegaram 37 quilos de maconha. Dizem que tem uma plantação a uns 9 quilômetros daqui. Com a falta de condições financeiras, muita gente faz o que não deve”, diz Júlio Tibúrcio da Silva. Horas tranqüilas, de paz e sossego, são poucas. Durante a feira, aos domingos, durante a festa de Santo Antônio, em junho, e enquanto a única televisão do povoado, movida a bateria solar, exibe as novelas da Globo, única diversão para os jovens em dias “normais”.

Necessidades

– Nós estamos precisando de tudo. Aqui tem tanto problema que só um prefeito não dá conta do recado, dizem os moradores de Laje dos Negros sobre a situação em que se encontram. Laje dos Negros, aliás, tem ares de “capital” quando comparada, por exemplo, a Alagadiço, os povoados mais próximos, que não passam de um punhado de casas amontoadas de forma desordenada, um grupo escolar, o inevitável campinho de futebol e pequenas capelas católicas onde os padres só dão ar da graça em dias de festas.

A história de Laje começou ainda no tempo da escravatura. Um dia, alguém encontrou escravos fugitivos que moravam ao relento, em um lajedo de pedra às margens do rio que banha o lugar. Outras pessoas foram chegando, a povoação se espalhou pelos cantos vizinhos. A negritude original foi se mesclando aos índios, caboclos, brancos, mas a grande maioria ainda é descendente dos escravos que deram origem à povoação. O tempo passou, mas a vida não melhorou para o povo de Laje e vizinhança alguns vivendo na mais completa pobreza.

Sem luz – e em alguns povoados sem água – não há condições de estocar alimentos para os períodos das “vacas magras”. A ambulância que ficava na região, pronta para remover doentes mais graves até o hospital ou posto de saúde mais próximo, sumiu depois que a nova administração municipal de Campo Formoso tomou posse. Também não há creche para as inúmeras crianças pequenas da região. As mulheres têm famílias numerosas. Algumas até mais de 10 filhos, nenhuma orientação, por exemplo, quanto à necessidade de fazer planejamento familiar, assunto que, em Campo Formoso, mulheres já discutem mais abertamente. Com crianças pequenas, não se pode trabalhar, dizem as mulheres da região.

Maria de Fatima Dannemann é jornalista
(matéria publicada originalmente no jornal A Tarde, reescrita em agosto de 2002)

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