Saturday, February 14, 2009

O estranho do bloco

by Fatima Dannemann

Domingo de carnaval. Mais ou menos seis horas da tarde. As ruas do centro de
Salvador estão lotadas. Engarrafamento de gente, trios elétricos, cordas de
bloco. Nesse cenário é que encontramos Fernanda. Idade entre 20 e 25 anos,
alta, magra, tida como bonita pelos padrões da moda. Fernanda vaga incerta
pela avenida procurando o bloco. Chegou tarde ao centro da folia. Esteve num
almoço, em casa de amigos. Bebeu, cheirou lança, experimentou maconha, na
"onda" brigou com o namorado. A última coisa que se lembra: um tapa e cair
da cadeira. Depois disso, lampejos de memória. Um carro, pessoas no carro, a
ida para a "cidade". Se vê na Avenida. O chão sobe e desce. Sons? Apenas uma
confusão no fundo da mente. De vez em quando, Fernanda ouve uma musica que
cantavam para ela quando criança:

Ô raia o sol suspende a lua/ Olha o palhaço no meio da rua...

Não. Não combina com o oioioi do axé, ou o quebra, mãinha do pagode. Mas ela
ouve. E vê... Vê anjos barrocos flutuando acima do trio elétrico...

- É esse o meu bloco...

Anjos barrocos? Não, cantores e bandas, mas é o que ela enxerga. Anjos
flutuando. E um portal lhe aparece na frente do trio.

- Deve ser a tal porta do céu. Morri. Overdose... Não devia... Morri...

Encaminha-se para o portal quando percebe mãos dos "armários" que fazem a
segurança da frente lhe segurarem e vozes gritando:

- Sai pra lá, moça.
- Não posso. Deixa eu entrar. Não foi overdose, foi acidente. Mereço o céu.
- Tá louca.
- Não estou. Morri.

A discussão segue acalorada quando uma voz de rapaz jovem soa macio:

- Deixem que eu cuido dela. Venha comigo.

E ela segue o desconhecido. Mais novo do que ela um pouco. Olhos esverdeados
e um lindo sorriso.

- Estou procurando meu bloco.
- Já passou. Vai ser dificil encontrar no meio desta confusão. Venha.

E de repente, estão em segurança na Praça da Piedade. Não sabe as horas, nem
quem é o desconhecido que lhe beija suavemente e lhe oferece para levá-la em
casa.
Tomam o ônibus na estação da Lapa.

-Está frio... Esquisito, está frio...

O ônibus está semi-vazio. Ela se senta na janela e o desconhecido a seu
lado. No balançar das rodas, cochila vendo a paisagem monótona e semi-escura
das áreas da cidade onde a folia nem chega perto. E então, reconhece, está
perto de casa. Dá o sinal de parada e nessa hora, volta-se para o lado. O
lugar vazio. Vira-se para o cobrador:

- Cadê o cara que estava comigo? Saltou e não percebi.

E a resposta do cobrador: "Moça, a senhora tomou esse coletivo sozinha. Não
tinha ninguém lhe acompanhando, não".
Arrepiou-se da cabeça aos pés. Mas, ainda assim pensou que cobradores nunca
reparam em quem paga a passagem. Por via das dúvidas olhou sua pochete
escondida no short do abadá: todo o dinheiro, documentos, tudo lá. Não foi
roubada.

***

O carnaval continuou. Fernanda procurou o rapaz no bloco segunda e
terça-feira. Chegou a vê-lo por um instante na segunda. Ou pensou que viu.
Ao conferir de perto, era apenas alguém parecido.
Na quarta-feira de cinzas, ao ler o jornal, uma notícia sobre o assassinato
de um folião do seu bloco. Por volta do meio-dia, num sequestro relâmpago
quando saia de casa para brincar o carnaval. Dezoito anos, olhos claros,
dentes perfeitos e um belo sorriso. A foto, não deixava dúvidas...

(a protagonista jura que esse caso aconteceu realmente)

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